terça-feira, 29 de abril de 2014

A bizarra indústria cultural de Huck


Os filósofos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer trouxeram à luz, nos anos 1940, uma das teorias mais importantes para entendermos a transformação da cultura em mercadoria no mundo capitalista. Segundo os pensadores da Escola de Frankfurt, a produção cultural, seja ela erudita ou popular, acaba encarcerada em modelos comerciais que desvirtuam aspectos reflexivos e críticos das criações, transformando tudo numa indústria que chamaram de "indústria cultural".

O pensamento de Adorno e Horkheimer focou, por exemplo, a arte cooptada para enaltecer o nazismo na Alemanha de Hitler e o entretenimento do cinema norte-americano que desviava a atenção dos problemas sociais dos anos 30 (e sempre serviu e serve ao imperialismo bélico estadunidense). Mas tal teoria, também chamada de Teoria Crítica da Comunicação, é totalmente pertinente nos dias atuais. E vemos isso todos os dias em um mundo que transforma quase tudo em mercadoria, desviando valores para preços.

Um exemplo gritante, para não dizer bizarro, que se viu esta semana, pode ser representado numa banana, a fruta tropical rica em potássio que, semioticamente, virou um tipo de "símbolo" de luta contra o racismo por causa da atitude execrável de um torcedor ao jogá-la em Daniel Alves, na Espanha. Pelas mídias sociais, o novo palco da comunicação de massa, celebridades e não-celebridades passaram a postar fotos suas ao lado de bananas, comendo bananas, segurando bananas e até fazendo da banana um artefato artístico para a qual passou a convergir uma causa muito mais nobre: a igualdade entre os seres humanos. Até que Luciano Huck resolveu faturar: criou camisetas de sua marca estampadas com bananas e a mensagem "somos todos macacos".

Huck colocou uma etiqueta de preço na luta contra o racismo: R$ 69 cada camiseta. E todo o dinheiro oriundo das vendas será revertido para o enriquecimento do já abastado apresentador-merchan, um dos mais bem pagos animadores de auditório da TV (fatura salário batendo em 1 milhão de reais), que, além de estrela global, é de dono de vários outros negócios pelo país, sem contar os muitos comerciais que protagoniza para vender de refrigerantes a celulares. 

Voltando à Escola de Frankfurt, o que Huck fez foi nada menos que se apropriar de uma causa coletiva, mundial, histórica para faturar dinheiro, reduzindo o desafio de quebrar a muralha erguida contra os negros a um souvenir cuja marca leva seu nome e engrandece apenas o seu ego (e seu bolso).

Dono de uma casa em Angra dos Reis que fere as leis ambientais (em torno da qual cercou o mar fazendo da faixa costeira sua propriedade particular), pego dirigindo embriagado numa blitz da lei seca no Rio (na qual se negou a fazer o teste do bafômetro, com a manjada alegação de que "tomou apenas umas taças de vinho") e explorador da tragédia alheia no circo pseudo-assistencialista de seu programa em busca de ibope, Huck está longe de ser um exemplo de luta por igualdade. A banana de sua camiseta, portanto, não passa de um exemplo bizarro de indústria cultural, um deboche a todos os negros e todos os brasileiros.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Santa hipocrisia e o homem-Pilatos


Nunca entendi o "sacrifício" da sexta-feira dita santa

Deixa-se de comer carne para se fazer um banquete de bacalhau muitas vezes regado a vinho com direito a muita gula e descontração à mesa.

Aliás, nunca entendi nem mesmo os sacrifícios.

Nunca entendi o porquê de se sentir culpado por algo acontecido, segundo as escrituras, dois mil anos atrás mas, ao sair à rua, depois de rezar aos pés do Cristo crucificado, fingir que não viu um mendigo jogado na sarjeta, com fome, frio e abandono; fingir que não tem nada a ver com uma sociedade de marginais favelados, famintos miseráveis, escravos de um sistema de produção à serviço de uma minoria.

Sempre me pareceu algo sem nexo essa relação do homem com as tradições. Volta-se ao passado em preces e cerimônias, mas não se consegue enxergar um palmo diante dos próprios olhos sobre as mazelas do presente e os riscos do futuro.

Nunca entendi também a relação dos homens com "carne" e com a vida em geral. Bois, frangos ou peixes, qual a diferença? São seres escravizados e dolorosamente assassinados numa indústria mais cruel que o tribunal de Pilatos, que leva dor e sofrimento aos banquetes dos que se acham fazendo algum tipo de "sacrifício".

Estranha é a forma como homem enxerga os outros e o mundo à sua volta. Sente-se dono de tudo, destrói tudo para seu prazer e sua comodidade e, pior, dotado de uma hipócrita autopiedade, ainda se diz sofrendo e se sacrificando diante de uma mesa farta de bacalhau norueguês onde, desde que esteja a sua família, todas as outras que se danem.

Bicho esquisito esse tal homem. Se diz à imagem e semelhança de um deus criador de tudo e propagador do amor, mas queima as matas, polui o ar e a água, leva espécies diversas à extinção e conduz um planeta inteiro a um futuro sombrio.

Hoje se chora pelo Cristo crucificado, enquanto a humanidade e todas as espécies desta esfera azul estão pregadas na cruz da desigualdade social, da falta de sustentabilidade ambiental, da ganância do capitalismo selvagem, do individualismo que se consolida através dos tempos e, mais que tudo, da hipocrisia de homens e mulheres que lavam as mãos diante da crucificação da vida na Terra.

O homem é, na verdade, a imagem e semelhança do tal Pilatos.

Imagem: Tela "Pilatos lavando as mãos", de Duccio di Buoninsegna

domingo, 13 de abril de 2014

A leveza de ser cego, gay, humano...


Nascer cego, viver na escuridão diante da difícil descoberta da própria homossexualidade e sofrer bullying duplo (pela cegueira e pela vocação sexual) na complicada fase da adolescência, é uma difícil sina, certo? Errado! Para "Hoje eu quero voltar sozinho", filme nacional que acaba de estrear nos cinemas, as coisas são mais simples, porque a vida pode ser mais simples.

O filme deriva do curtametragem "Eu não quero voltar sozinho", de 2010, que fez grande sucesso nas teias digitais, recebendo prêmios em festivais como o de Paulínia, Mix Brasil e Aruanda. O longa de agora já foi aclamado em salas europeias, como no Festival de Berlim, onde levou o Fipresci, prêmio da crítica internacional, e o Teddy Bear, focado nas temáticas LGBT.

A piscina da casa da melhor amiga, a sala de aula, os encontros noturnos com bebida escondida e o quarto nos momentos de estudo com o amigo que desperta um sentimento muito mais forte que amizade são alguns cenários constantes do filme. Trata-se de um cotidiano adolescente vivido na cidade de São Paulo, com sotaque tipicamente paulistano, mas que serve a qualquer cidade, estado, país, ser humano e idade.

Focado nos personagens de Guilherme Lobo (Leo), Fabio Audi (Gabriel) e Tess Amorin (Giovana), não-estrelas que brilham em excelentes atuações dirigidas por Daniel Ribeiro, "Hoje eu quero voltar sozinho" é uma obra sobre as fronteiras da descoberta. E o mais interessante é que consegue estilhaçar os muros da intolerância não com bandeiras, panfletos ou berros, mas com algo que tanto falta a héteros, homo, bi, trans ou pansexuais: ternura.

Com leveza, naturalidade e graça, o filme consegue trabalhar, encarnados em um só personagem, dois tabus da vida: a deficiência e a sexualidade. E em vez de sentirmos pena do garoto cego que, na escuridão de sua vida, se descobre gay, nos inspiramos e nos encorajamos com sua conduta, com sua coragem que não é bruta, mas meiga; com sua esperança que não é ingênua, mas pura; com sua possibilidade de amar e ser amado que transcende limitações do corpo, da mente e do coração.

O clímax de "Hoje eu quero voltar sozinho" está na resposta mais bela e ousada que se pode dar à intolerância dos preconceituosos: quando esperamos que Leo reaja com violência às provocações dos amigos que o escracham diante do "namoradinho", ele pega na mão do rapaz e caminha para a frente, mostrando que a maior coragem de cada um consiste em, independente de padrões ou tradições, assumir o próprio caminho ao lado de quem se queira dividir a caminhada.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Valesca, pensadora sim!


O professor do Distrito Federal que resolveu chamar Valesca Popuzuda de "grande pensadora" numa questão de prova conseguiu levantar uma discussão interessantíssima: o que é ser pensador e o que é pensar? Mais que isso: o que é educar?

Paulo Freire, um dos poucos brasileiros a encampar um projeto nacional de educação, disse que ensinar não é transferir conhecimento e sim criar possibilidades para sua própria produção ou construção. Ou seja, segundo o maior educador da nossa história, educar não é um monólogo, mas um ato coletivo. Para ser bom professor, portanto, é preciso entender mais do que o conteúdo, a "matéria"; é preciso entender de alunos, porque só assim se consegue estabelecer canais e linguagens eficientes no trato com eles (e aqui entra uma ciência pela qual sou apaixonado, a Educomunicação). 

Voltando ao caso da Popuzuda, explica o professor Antonio Kubitschek em entrevistas para a velha mídia (que só se preocupa com educação quando há algo "bizarro" a noticiar), que a citação partiu de uma discussão em sala de aula para se refletir sobre a construção dos valores em uma sociedade.  Ora, então, considerando a reflexão prévia da classe sobre a música no processo da construção de valores sociais (algo de imensa importância, principalmente depois que Zygmunt Bauman nos mostrou o mundo líquido); e considerando também que "Beijinho no ombro" está sendo cantado e mimetizado do Vidigal aos Jardins, qual o problema da discussão levantada na sala de aula do Distrito Federal? Seria por se tratar de cultura popular? Pelo fato de Valesca ter nascido na favela e se rebelado contra sua condição, vencendo na vida? Ou o problema é o odioso funk, que fere os ouvidos de quem prefere Jota Quest cantando sobre refrigerantes?

Há quem diga que o maior problema foi chamar Valesca de "grande pensadora". A própria cantora reagiu à polêmica, negando-se a tal titulação, mas deixando uma pequena aula sobre o que é prioridade na discussão do interesse público: "Eu acho que as pessoas tinham de se preocupar era com o salário dos professores, com as escolas que não têm mesa, não têm cadeira, não têm nem giz. Acho que a gente tem de cuidar da nossa educação que está precária. Com tanta coisa para estar se preocupando, as pessoas querem gerar polêmica por isso".

Em poucas palavras, a funkeira resumiu um problema que não é resolvido por políticos que mais se preocupam com o poder, que não é bem abordado por uma mídia que só quer gerar espetáculo (e cada vez mais reportados com erros gritantes) e que não é enfrentado por muitos educadores incapazes de abraçar a educação como uma missão nobre, preferindo tradições ultrapassadas.

Se uma citação de Valesca Popuzuda em prova escolar foi capaz de levantar uma discussão nacional sobre o que é educar, é porque ela consegue, talvez mais que muitas teorias enquadradas em ABNT, fazer pensar num país que não é muito adepto dessa prática. E beijinho no ombro aos donos da verdade!



Valesca posa para a campanha contra o estupro: ousada mas educativa e com linguagem extremamente eficiente ao falar com seu público


* agradecimento a Tainã Briganti, que permitiu um debate essencial a este texto

terça-feira, 8 de abril de 2014

Clima: a água vai bater na bunda


Deu no New York Times que as mudanças climáticas atingirão a todos, indiscriminadamente. Pobres primeiro, claro, depois os ricos e depois até os milionários. Evidente, afinal estamos todos no mesmo barco, mesmo que haja divisões entre quinta, quarta, terceira, segunda e primeira classes. E a rota já chegou num ponto em que não há mais volta: caminhamos rumo a, se não um abismo, um mar tempestuoso de clima hostil.

Diz o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, da ONU, que "As calotas polares estão derretendo, o gelo marinho no Ártico está em colapso, o abastecimento de água está sobrecarregado, ondas de calor e chuvas fortes estão se intensificando, os recifes de corais estão morrendo e os peixes e muitas outras criaturas estão migrando para os polos ou sendo extintos".

Novidade? Não!

O Protocolo de Quioto, de 1997, já alertava para tudo isso. Aliás, antes de Quioto, teve a Conference on the Changing Atmosphere, no Canadá, em outubro de 1988, seguida pelo IPCC's First Assessment Report em Sundsvall, Suécia, em agosto de 1990, que culminou na ECO-92, no Rio de Janeiro, em junho de 1992. Ou seja, já faz umas três décadas que sabemos onde vai parar essa máquina humana de gerar carbono. 

O que estamos fazendo, de fato, para evitar isso? Pouca coisa. Ou quase nada.

Os maiores poluentes e geradores de lixo do mundo, os EUA, desdenharam o Protocolo de Quioto e continuam acreditando num modelo de sociedade consumista, individualista, obesa e, portanto, nada sustentável. A China mantém usinas a carvão com cidades cobertas de poluição para manter sua produção capaz de dominar o planeta no mercado de tudo. A Europa está preocupada em, antes de qualquer coisa, sair da crise econômica e gerar empregos, seja na área que for. No Japão, Fukushima continua vazando material radioativo. O Brasil, celeiro da humanidade, comemora seus poços de petróleo, o combustível mais poluente mas que ainda move o mundo. E todos fazem do mar, nosso verdadeiro pulmão graças às algas, um esgoto.

É a economia, cara pálida! Dane-se o planeta! Karl Marx, que nasceu em 1818, já dizia isso: a economia molda as sociedades.

Por falar em sociedades e seus costumes, nisso também tudo continua muito longe de uma convivência sustentável. As ruas estão abarrotadas de carros com uma só pessoa dentro de cada um; o desperdício de alimentos está batendo nas alturas até em países que têm fome, como o Brasil (um dos campeões de desperdício alimentar, aliás); há no mundo todo um consumo absurdo de carnes que demanda enormes devastações de florestas para pastagem e plantio de vegetais necessários para alimentar rebanhos (vegetais que seriam muito mais eficientes se fossem diretamente para a mesa de humanos, sem contar a quantidade enorme de água necessária para alimentar esses bichos); filhos são feitos quase por capricho em um mundo superpovoado, enquanto tantas crianças abandonadas mofam em orfanatos e nas sarjetas. 

Somos, pessoal e profissionalmente, incompetentes para administrar a Terra, até porque o primeiro grande erro (disseminado por religiões) foi achar que tudo isso foi feito para nós. Não conseguimos, ainda, enxergar que nossa condição é de apenas uma espécie entre milhares, e que deveríamos ter aprendido a conviver, não dominar.

As mudanças climáticas chegarão, é óbvio. Aliás, já chegaram. Mas continuaremos agindo de forma cínica, vivendo da economia e do individualismo. A publicidade e o marketing cuidarão da transformação de produtos poluentes em anjinhos ecológicos e o jornalismo continuará perdidamente cego para a questão. Só mudaremos de postura quando a água bater na nossa bunda, quando o mar invadir o metrô de Nova York, quando o Tâmisa invadir o Palácio de Buckingham e quando as indústrias da China perceberem que não conseguem produzir um drive capaz de fazer o backup do planeta.

É ação e reação. A Terra está respondendo a tudo o que fizemos com ela. 

(foto: cena do filme "O dia depois de amanhã")

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Jornalistas, comemoremos o amanhã



"Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras, e minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista - não tenho duas". São palavras de Claudio Abramo, escritas no livro "A Regra do Jogo" e que permitem uma boa reflexão para o dia de hoje, quando se celebra o profissional do jornalismo. 

Abramo nasceu em 1923 e este seu texto é um importante lembrete de que um repórter, um editor ou até mesmo o mais poderoso profissional de um veículo de mídia deveria ser apenas servo dos fatos, não estando, em hipótese alguma, acima deles. "Não existe uma ética específica do jornalista: sua ética é a mesma do cidadão. Suponho que não se vai esperar que, pelo fato de ser jornalista, o sujeito possa bater a carteira e não ir para a cadeia", escreve Abramo.


A comparação com um batedor de carteiras pode parecer exagerada, mas é bem pertinente, porque quando se distorce um fato, quando se descontextualiza uma frase dita por uma fonte ou personagem entrevistado, quando se carrega nas tintas com o objetivo de agredir ou enaltecer, se está, na verdade, roubando algo que é de direito de todos em uma democracia: a informação ou, como diria Mino Carta, o acesso à "verdade factual". 

A mídia brasileira está repleta de batedores de carteiras, de ladrões da verdades, de gente que se acha dona de uma ética muito acima da ética do "resto" da população. Arrogância, distorções, sensacionalismo, erros crassos sem a devida correção, engajamento político e econômico e até um certo terrorismo informativo são alguns dos vícios que maculam a imprensa. Isso é, em grande parte, de responsabilidade dos donos, dos patrões, que em geral não são jornalistas e pouco entendem de jornalismo, querendo usar seu jornal, sua revista ou sua TV para exercer poder. Entretanto, eles só conseguem levar isso a cabo porque contam com a conivência de jornalistas, que se prestam a um papel de capacho, de capataz.

Felizmente, porém, a comunicação está plena revolução, na transição do analógico centralizado para o digital distribuído e compartilhado. Todos ganharam poder de mídia com a internet 2.0, com seus perfis nas mídias sociais e isso já exige a construção de um novo tipo de jornalismo e de um novo tipo de jornalista. O novo profissional precisa ser aberto à interação, como mediador da sociedade e não mais porta-voz de quem lhe paga o salário ou patrocina a publicação para a qual escreve. A fórmula da comunicação está mudando. Não há mais emissores e receptores, mas uma sinfonia comunicativa em que todos são receptores e emissores.

O velho jornalismo, agonizante nas ditatoriais folhas impressas ou nas apelações bizarras da TV aberta, terá de morrer para renascer uma nova comunicação, em que o jornalista vai precisar, sim, aprender a ser marceneiro, servindo à verdade, à democracia e ao bem comum. Ou morrerá junto com o papel e o televisor de válvula.

Se há algo a comemorar, portanto, certamente está na possibilidade do amanhã. Hoje, o jornalismo (e isso não é só no Brasil) faz muito menos do que poderia fazer por um mundo melhor.

(foto: BrAt82/Schuterstock)