quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A assassina ditadura da beleza



Mais uma para o rol da beleza suicida. Desta vez, por aplicação de hidrogel para modelar o corpo, numa dose 200 vezes maior que a recomendada por entidades médicas. Mas não foi a primeira nem a última, tampouco a única maneira de se matar em nome da estética. 

No vale tudo para se encaixar ao padrão das "gostosas" e dos "gostosos", vale enfiar a própria vida numa infecção generalizada causada por gel modelador, ou atrofiar testículos e desenvolver cânceres por bombas que tonificam músculos; ou ainda furar os intestinos com cânulas de lipoaspiração; ou, junto de todos esses, perder horas diárias suando numa academia madrugada adentro.

Vivemos numa sociedade esquizofrênica que, por um lado, é repleta de açúcares e gorduras como padrão de sabor e, por outro, é bombardeada por padrões de beleza em arquétipos "photoshopados" com barriga tanquinho; bíceps, coxas, tríceps e quadríceps trincados. Entre a academia e a doceria, entre os anúncios do Mc Donald's e a foto tratada mil vezes da modelo da capa, a equação não fecha, e é capaz de enlouquecer.

Tudo isso explode no contexto da era da imagem, no templo da mídia que é, paradoxalmente, patrocinada tanto pela indústria da gordura trans como pelos estereótipos dos corpos perfeitos. Nesse contexto, não interessa o que você é, o que você pensa e seu caráter, mas a sua aparência (e o que você consome). Homens que não trincam os bícpeps nem definem a peitoral estão fora do rol dos "pegáveis" da balada; mulheres sem glúteos e peitos turbinados estão eliminadas das "gostosas" desejadas.

No mundo insano que se instalou, envelhecer é uma vergonha, então se rebocam rostos com botox, estica-se aqui e ali e, de repente, a cara que deveria ser de uma senhora ou de um senhor se torna uma escultura bizarra que faria inveja até aos artistas mais abstratos. 

As pessoas perdem a própria essência em busca de serem aceitas pela era da aparência, num tempo em que reinam o superficial, o efêmero e o descartável. E, pior que isso, sepultam de vez a possibilidade de serem felizes aceitando a si próprias.

O pensamento de Sócrates, um dos filósofos mais importantes da História, nunca foi tão contemporâneo quanto nos dias de hoje. Ele desafiou as pessoas a conhecerem a si mesmas para compreender a própria natureza, podendo, assim, se transformar de dentro para fora e se relacionar melhor com os outros e com o meio. Se os humanos de hoje fizessem isso, não seriam tão iguais e banais nos músculos trincados, nos glúteos turbinados, nos cabelos alisados, nas caras esticadas e num insuportável vazio intelectual misturado à completa ignorância sobre as muitas possibilidades de beleza.


Vídeos: DE PERTO, NINGUÉM É NORMAL







sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A consciência tem cor, sim!

Ontem, apenas 18% das cidades do Brasil pararam suas atividades em razão da consciência negra. E não faltaram, entre os brancos e bem nascidos que gozavam do feriado ainda tão restrito, as mais bizarras observações acerca da data, como propor dia da consciência branca, a necessidade de uma consciência que não tenha cores, o excesso de feriados no país etc. São sinais de que a falta de conhecimento histórico é um grave problema do Brasil.

Primeiro, falemos de feriados. O Brasil todo (ou seja, 100% das cidades) para em pelo menos seis datas religiosas (todas católicas em um país dito laico), sendo elas: Sexta Feira Santa, Páscoa, Corpus Christi, Dia da Padroeira Nossa Senhora Aparecida, Finados e Natal. Somam-se a isso as datas municipais de padroeiros em que cada cidade para suas atividades para badalar os sinos da igreja. Portanto, se há muito feriado no Brasil, talvez seja hora de repensar se não há santos demais impostos pelo Vaticano em nosso calendário.

O que importa mais nesta questão, entretanto, é o porquê da consciência especificamente focada nos negros. 

O Brasil foi o país que mais recebeu escravos africanos no planeta entre os séculos XVI e XIX. Segundo o historiador Caio Prado Jr., foram ao menos 7 milhões de seres humanos acorrentados para uma vida de sacrifícios, apenas por terem nascido negros (esse número é mais da metade de todos os escravos trazidos para as Américas). Também foi o Brasil o país que mais tarde acabou com a escravidão no mundo, num processo que apenas jogou os afrodescendentes numa liberdade sem oportunidade alguma de vida digna, condenando-os à marginalidade social (pesquisei o tema para uma trilogia de livros que estou escrevendo e lançarei no início de 2015).

Os reflexos desse momento histórico estão à nossa vista até hoje, e bastam dois dados para entendermos o que isso significa: 68% das mortes violentas no país têm como vítimas os negros, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2014; trabalhadores negros ganham, em média, pouco mais da metade (57,4%) dos rendimentos dos brancos, segundo dados do IBGE, também deste ano. Ou seja, existe uma ferida aberta, ainda necessitando de cicatrização.

Dizem os defensores da "consciência branca" ou da "consciência sem cor" que as gerações de hoje não têm culpa pelo que foi feito no passado e eis o cúmulo da irresponsabilidade histórica, pois estes repetem os mesmos discursos de seus ancestrais para manter a escravidão no país, até porque foram os colonizadores que a impuseram como modelo na colônia (e, portanto, os senhores de engenho não teriam "culpa" por isso).

Numa sociedade democrática onde se pratica cidadania, todos são responsáveis por (e incumbidos de) construir um país justo e consciente de seus débitos e créditos do passado. Porque não se chega a altura alguma sem considerar as raízes fincadas no chão. E a força de nossas raízes está em braços negros que ajudaram moldar nossa cultura e são nossos irmãos de nação. 

Sem África, não haveria o Brasil que hoje temos.

(foto majsom/Shutterstock)

domingo, 19 de outubro de 2014

A morte dos jornais



A ombudsman da Folha, Vera Guimarães, revela em sua coluna desta semana uma obviedade que está levando os jornais e o jornalismo à morte no Brasil: o leitor pensa. 

Em texto que trata da saída de Xico Sá, um excelente colunista que foi impedido pelo jornal de declarar seu voto nas eleições presenciais porque isso "fere a imparcialidade da Folha", a ombudsman diz: "Qualquer leitor atento é capaz de identificar as preferências dos colunistas, escancaradas nas defesas que fazem de um determinado candidato ou nos ataques ao seu adversário".

Uau! Palavras dignas de um prêmio Esso ou quiçá um Pulitzer!

E ela vai além, admitindo que a Folha "tropeçou ruidosamente" nesta questão. Não apenas nessa e não apenas a Folha!

É evidente que os leitores são capazes de identificar o partidarismo dos jornais. E não apenas nas colunas assinadas, mas também na escolha de um tipo de pauta em detrimento de outras e no foco capcioso das manchetes, das fotos, das capas. Por isso o que se fez com Xico Sá é no mínimo hipocrisia porque sua opinião não é a mesma da família Frias.

A mídia tradicional (impressa, radiofônica e televisiva) agoniza, despencando em tiragens e audiência, não apenas porque o mundo digital a engoliu com maior rapidez, mas principalmente porque a internet descentralizou a verdade, possibilitando uma interação que os velhos veículos nunca quiseram dar aos seus leitores, ouvintes e telespectadores.

A velha mídia, com raríssimas exceções, só sabe fazer o "samba de uma nota só", tentando puxar toda a brasa noticiosa para sua sardinha partidária, aquecendo apenas os interesses de um punhado de famílias que sempre enriqueceu fabricando notícias para distorcer mentes e corações.

Enquanto essa máquina de moer verdades estava sozinha, ela ainda conseguia reinar. Levou Getúlio ao suicídio; ganhou com o golpe de 1964, que se voltaria até contra si mesma; elegeu Collor na primeira eleição direta após 21 anos de terror, conseguindo derrubá-lo logo em seguida. Depois da internet, entretanto, esse ciclo de vitórias vem se encerrando, porque o que se manipula nas folhas de papel se espatifa em um ambiente mais plural das teias virtuais. É um caminho sem volta, ainda que os barões da comunicação consigam, aqui ou acolá, alguma vitória.

A velha mídia já tem morte cerebral anunciada, e está levando para o túmulo o jornalismo tradicional. Ou alguém acha que a Globo é imparcial? Que a Veja é imparcial? Que Folha e Estado são imparciais?

Ora, imparcialidade não existe nem nunca existiu! A escolha da pauta já é parcial, a hierarquia das notícias já é parcial, a escolha da foto, da capa ou da manchete já é parcial. O que deveria existir, no lugar desse discursinho hipócrita da imparcialidade, é a honestidade em admitir posturas, em assumir lados, coisa que a velha mídia brasileira nunca fez nem nunca fará, porque acima de tudo é covarde.

Mas, voltando à "descoberta" da ombudsman, o leitor, o ouvinte e o espectador pensam, sim! E agora têm a internet para compartilhar pensamentos. Por isso, a velha mídia agoniza, num caminho sem volta para a tumba. E um novo tipo de jornalismo começa a ser possível, de mediação nas redes, de interação comunitária, de pluralidade e dialética. Para tanto, os jornalistas precisam aprender a trocar o puxa-saquismo aos seus patrões pelo amor em servir à liberdade de expressão.

Leia mais: Xico Sá, Folha e o que já vi na mídia

Foto: Fleming Photography/Shutterstock

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Xico Sá, Folha e o que já vi na mídia


Xico Sá, um dos poucos bons colunistas que restavam na Folha de S.Paulo, deixou o jornal ontem porque foi proibido de publicar um texto declarando seu voto em Dilma. Poderia até ser um fato aceitável à luz do jornalismo se a regra valesse para todos em um jornal verdadeiramente imparcial, mas não é o caso da Folha, nem de quase toda a velha mídia brasileira.

No mesmo jornal onde Xico Sá escrevia, Reinaldo Azevedo, um colunista de extrema direita com um histórico de intolerância em seus textos (com nuances machistas, homofóbicas e de um elitismo ímpar), declara quase diariamente seu partidarismo político, inclusive já tendo revelado seu voto- ele e um time de colunistas alinhado a um pensamento único, sem espaço para a dialética. Também na mesma Folha, Aécio Neves, o próprio candidato, mantinha coluna fixa semanal até as vésperas da eleição; José Serra tinha também espaço reservado semanalmente até as vésperas da eleição passada; e Fernando Henrique Cardoso também escrevia até pouco antes de se eleger. O privilégio, entretanto, não valia para outros candidatos fora do PSDB.

Eis um câncer a ser extirpado da velha mídia brasileira, que macula a democracia e está matando o jornalismo, dia após dia, principalmente em época de redes digitais onde a diversidade de opiniões é livre: a falsa imparcialidade somada a uma intolerância crônica ao debate verdadeiramente plural. Ora, se Reinaldo Azevedo pode apedrejar a esquerda diariamente, aclamando os barões da direita, por que Xico Sá não poderia mostrar um outro lado, deixando ao leitor o pleno direito de pensar e decidir entre os dois lados? Mas, não! A Folha só tem um lado, assim como impede que o outro apareça em suas páginas. É um monólogo antijornalístico, uma autocensura declarada.

"Um dia ainda vou contar tudo o que a imprensa não deixa sair se for contra a orientação política dos grandes jornais", escreveu Xico Sá em sua conta no Twitter, ontem. Deveria já ter revelado, pois faria muito bem à opinião pública, que hoje não precisa mais dos velhos jornalões para se informar (a internet é um novo mundo!). 

Pois eu também já vi muita coisa ruim nos anos em que trabalhei e convivi diariamente com colegas que trabalharam em veículos de imprensa. Coisas que me fizeram deixar essa área. E elenco algumas:

- Cancelamento da publicação de uma pesquisa eleitoral que havia sido encomendada pelo jornal, mas cujo resultado não agravada ao dono, que votava em outro candidato;

- Ordem para entrevistar o deputado-candidato Fulano (tucano, claro) porque era "amigo do jornal". Mas, "e os outros?". "Os outros, não", era a resposta;

- Orientação vinda de cima para falar bem do prefeito porque ele mantinha a veiculação da publicidade oficial da Prefeitura no jornal, o que rendia dinheiro (público) à empresa;

- Orientação vinda de cima para bater no prefeito porque ele resolveu abrir licitação para que outros veículos disputassem a publicidade oficial da Prefeitura no jornal, o que deixaria de render dinheiro (público) à empresa;

- Ordem para só entrevistar anunciantes, excluindo não-anunciantes (ou seja, pagou sai; não pagou, não sai).

São apenas alguns exemplos que, junto a vários outros, foram suficientes para eu não querer pisar numa redação, nunca mais, até porque manter-me nesse ambiente custaria abdicar de todos os meus valores. Como educador, hoje, procuro orientar meus alunos a sempre ter olhos críticos diante dessa fábrica de mentiras chamada mídia.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Vergonha de ser paulista

Os Retirantes, de Portinari: a família nordestina que ergueu SP

Já no dia seguinte à eleição, eu ia ao trabalho ouvindo a BandNews FM e Ricardo Boechat comemorava o fato de o clã Sarney ter perdido no Maranhão. Eu ouvia comemorando com ele, mas senti que as análises eram incompletas, pois tratavam apenas o Nordeste como detentor do velho coronelismo na política.

Boechat se esqueceu de dizer que outro clã, tão ou mais poderoso que os Sarney (controlando inclusive a mídia para a qual o jornalista trabalha) se manteve em São Paulo, em pleno caos hídrico, levando o sexto mandato consecutivo para somar quatro anos aos 20 já exercidos de poder ininterrupto. Também não mencionou o fato de o Estado "mais desenvolvido" ter colocado no topo do ranking dos eleitos para o Parlamento três seres circenses, um da mídia, um do escracho dito "humor" e outro dos templos religiosos que pregam o ódio e a segregação.

Mas o pior ainda estava por vir. No mesmo "day after" das eleições, o ex-presidente FHC, carioca de nascença e paulista de alma, escancarou o elitismo bandeirante, preconceituoso e separatista, ao tentar vincular os votos da candidatura adversária à "ignorância" dos eleitores. Bastou essa pérola antidemocrática para seus discípulos vomitarem ódio nas redes sociais, acusando o "voto com estômago", que seria gerado pelo Bolsa Família no Nordeste do país. 

E eis que o segundo turno começou com um Brasil rachado entre "inteligentes" e "ignorantes", entre quem vota "com o cérebro" e quem vota "com o estômago", num tipo de secessão tupiniquim em pleno século 21.

Quanta idiotice...

Esquecem os autores dessas falácias que muitos "inteligentes" paulistas também votam para engordar seus estômagos em restaurantes chiques à custa do dinheiro público, apostando na especulação financeira à espera de juros altos bancados pelo Estado, que lhes possam garantir ganho fácil na Bolsa de Valores. Era assim em tempos passados, quando muitos "empresários" sequer trabalhavam, pois preferiam aplicar dinheiro na especulação para enriquecer mais graças à recessão e ao desemprego. Isso é muito pior que depender de programa de transferência de renda, pois são pessoas abastadas que querem ficar mais ricas às custas do dinheiro que deveria ir para saúde e educação, mas é torrado na manutenção de políticas econômicas selvagens.

Também se esquecem esses paladinos do "saber" que a mesma São Paulo que fazia piadas da seca no Nordeste está quase tendo de deixar o banho de lado porque os reservatórios de água simplesmente secaram e tudo isso é resultado da incompetência das elites que governam esse Estado, dona de um individualismo doentio, onde o que vale é a "força da grana", como bem cantou o baiano Caetano.

O mais grave de tudo, entretanto, é a ingratidão. Os mesmos que humilham nordestinos moram em prédios levantados por eles, trafegam em avenidas e pontes construídas por eles, são servidos por eles em suas casas, em suas equipes de trabalho e só habitam uma metrópole graças aos migrantes que para cá vieram, com uma coragem única. Não fossem os nordestinos, que Euclides da Cunha disse muito bem serem acima de tudo, fortes, São Paulo não passaria de uma provinciazinha sem nenhuma importância no cenário nacional. Aliás, a cidade que hoje é das maiores do mundo é mais nordestina que paulista, porque aqui vivem inúmeros irmãos nascidos na Bahia, em Pernambuco e outros estados que, curiosamente, hoje crescem mais que São Paulo.

Eu sou paulista. Nasci nesse Estado e aqui cresci, aqui vivo, mas não me sinto nem um milímetro melhor que nenhum outro brasileiro por isso. Muito pelo contrário, o que sinto hoje é vergonha, pela incitação ao ódio, ao preconceito e a um bairrismo ridículo de muitos conterrâneos meus.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Excretor é mais útil que Fidelix

Levy Fidelix é o arquétipo do bizarro em um país onde a democracia tem muito a evoluir. Sua única proposta para o país, há décadas, é um pitoresco aerotrem que ele sequer consegue explicar direito. 

Apesar disso, Fidelix, com seu bigode agora tingido, conta com espaço e tempo nobres para vomitar idiotices, e recebe dinheiro do fundo partidário para continuar existindo enquanto candidato. Ontem, ele chegou ao seu ápice, num rompante absurdo contra homossexuais: comparou gays a pedófilos, disse que a homossexualidade reduziria a população do Brasil à metade e que "aparelho excretor não reproduz".

À lunática ótica utilitarista do aerocandidato sobre o corpo humano, caberiam algumas colocações. Se o aparelho excretor dos gays só deveria ser usado para excretar, isso deveria valer também para os pais e futuros pais de família que adoram tal órgão das namoradas ou futuras esposas, ainda mais em um país machista em que abundam as bundas femininas nas mais diversas campanhas publicitárias, certo? E sexo só deveria ser feito para reproduzir, afinal, se não vale o desejo como algo "utilitário", nada de transar por prazer, independente de qual órgão esteja em uso! Ah, e nada de sexo oral ou mesmo beijo, afinal a boca deve servir para nos alimentarmos ou, no máximo, para respirarmos em dias de nariz entupido. 

Não vale a pena elucubrar mais sobre algo tão tosco, porém cabe uma última pergunta: qual a utilidade de Fidelix em disputas presidenciais? A que ele serve em nossa democracia? O que ele agrega, eleição após eleição, ao debate político?

O aparelho excretor, seja utilizado como for pelo seu dono (afinal, cada um que cuide do seu, como quiser), certamente é muito mais útil que Fidelix.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

"Nanicos" salvam a democracia

Nos debates presidenciais deste ano está acontecendo algo curioso (como, aliás, está sendo curiosa esta eleição como um todo). Tal qual nos filmes do Batman, onde os vilões geralmente deixam de ser coadjuvantes para brilharem como as verdadeiras estrelas, candidatos chamados de "nanicos", aqueles que as pesquisas relegam ao limbo, estão dando show.

Ontem, no encontro promovido pela CNBB, foi a vez de Luciana Genro, do PSOL, a única a colocar luz na questão da corrupção, que existe desde que as naus de Cabral chegaram por aqui mas que, em toda a eleição, é tratada de forma parcial, hipócrita e distorcida pela mídia e por grande parte dos candidatos. 

Lembrando fatos com didática (e seu delicioso sotaque gaúcho), ela desconstruiu a retórica de Aécio Neves, que vociferava contra a "vergonha" que ocorre na Petrobras: "O senhor fala como se no governo do PSDB nunca tivesse havido corrupção, quando na realidade nós sabemos que o PSDB foi precursor do mensalão, com seu correligionário e conterrâneo Eduardo Azeredo. E o PT deu continuidade a essa prática de aparelhamento do Estado" (...) "Também foi pública e notória a corrupção que ocorreu durante o processo de compra da reeleição do mandato do então presidente Fernando Henrique Cardoso" (...) "Também foi público e notório o processo de corrupção nas empresas públicas que foram privatizadas, num processo conhecido como 'privataria tucana'. Então, o senhor, candidato Aécio, falando do PT, é como o sujo falando do mal lavado, porque o senhor é de um partido que tem promovido a corrupção, que tem inclusive se beneficiado dos financiamentos de campanha da mesma forma que o PT da candidata Dilma e do PSB da candidata Marina. As empreiteiras que fizeram o escândalo de corrupção da Petrobras são as mesmas que financiam a sua campanha, financiam a campanha da Dilma, financiam a campanha da Marina" (...) "O senhor é um dos políticos que tem vinculação com esses segmentos mais parasitários da política nacional".

A câmera voltou para Aécio que, nas cordas, tentou rebater, dizendo que a candidata estava atuando como linha auxiliar do PT. E, de novo, foi metralhado pela candidata. "Com todo respeito, 'auxiliar do PT' uma ova, candidato (...) O senhor não tem resposta para debater comigo sobre corrupção, até porque o senhor foi protagonista de um dos últimos escândalos (...) O senhor foi protagonista do escândalo do aeroporto, onde o senhor utilizou o dinheiro público para construir um aeroporto nas fazendas próximas das fazendas de sua família, inclusive entregou as chaves para o seu tio. Então o senhor é tão fanático das privatizações que consegue privatizar um aeroporto e entregar para sua família".

Num canal de pouca audiência e às altas horas da noite, certamente poucos viram ao vivo, mas o assunto hoje está bombando nas mídias sociais, onde a opinião pública realmente age em tempos digitais.

Assista ao trecho:



Não é a primeira vez que Luciana Genro ganha a cena. No debate anterior, do SBT, ela mirou sua metralhadora para Marina Silva, questionando a subserviência da candidata ao pastor Silas Malafaia: "Não durou 24 horas, Marina, e quatro tuítes do Malafaia, teu compromisso de combate à homofobia nas escolas. Não é possível. Os Direitos Humanos e sociais não podem ser restringidos. É preciso defender todos os que precisam de mais direitos". A pergunta de Luciana a Marina começou focando a questão econômica, e também de forma direta: "Tu és a segunda via do PSDB?", inquiriu a gaúcha.

Assista ao trecho:



Outro "nanico" das pesquisas que vem brilhando nos debates é Eduardo Jorge, do PV. Já no primeiro confronto, promovido pela Band, ele driblou a capciosa pergunta de Boris Casoy, que tentava atingir Dilma Rousseff, do PT, não perguntando a ela, mas a ele, sobre a lei de meios. Jorge não cai na armadilha e até a ironizou: "Então, sou obrigado a concordar com a presidente Dilma, respondeu Jorge. "Ficarei com a posição dela", completou, utilizando apenas frações do seu tempo de resposta. Questionado pelo mediador se já tinha acabado, ele deu de ombros e, de forma sui generis, disse: "Acabei".

Assista ao trecho:


Com essa performance nos debates, dois "nanicos" das eleições presidenciais deste ano (quem diria!) estão prestando um grande serviço à democracia, porque desmascaram o marketing político, cada vez mais poderoso na construção de imagens fantasiosas dos candidatos. 

Luciana e Jorge, cada um ao seu jeito, chamam o debate para a arena política, onde ele realmente deve acontecer, sem meias palavras ou representações que mais se assemelham às artes cênicas. A forma como suas palavras "viralizam" nas mídias sociais, a nova arena das comunicação de massa, são uma esperança de que a maquiagem, o jogo de cena, as palavras ensaiadas e toda a semiótica milionária da marquetagem podem se esfarelar na era digital.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O gay morto e a praga a se combater



João Antonio Donati tinha apenas 18 anos. Foi assassinado cruelmente em Goiás, encontrado cheio de hematomas e com sacolas plásticas enfiadas em sua garganta, além de um bilhete revelando a motivação para o crime: "Vamos acabar com essa praga".

A "praga", no caso, ao que tudo indica, é a orientação sexual do garoto -e de 10% da humanidade. Ele era gay e seu azar foi nascer entre pessoas ainda incapazes de entender a característica que manteve nossa espécie viva desde que surgimos na Terra: a diversidade (porque se fôssemos todos iguais, se tivéssemos genes e características iguais já teríamos sido dizimados por um vírus, uma bactéria ou qualquer intempérie; e se tudo no mundo fosse igual sequer haveria mundo).

João Donati não era um diferente entre os "normais", porque simplesmente não há "normais". Todos somos diferentes, temos todos nossa própria natureza e deveríamos todos saber que até podemos não gostar das características dos outros, mas jamais nos é de direito agredir verbal ou fisicamente aquele ou aquela que nos incomoda, porque isso nos reduz ao patamar dos monstros, dos indigentes, das feras irracionais que sequer merecem habitar um mundo tão diverso.

Os algozes de João Donati e de tantos gays como ele, humilhados, espancados, torturados e mortos, estão impunes e ficarão impunes. Estão nos líderes de templos que se autointitulam "casas de Deus", pregando um criador pautado no ódio e na segregação; na hipocrisia dos que conclamam os anjos com práticas das trevas; estão nos burocratas que reproduzem conceitos medievais de família e valores; na educação que se nega a educar para a diferença; na mídia covarde que reforça estereótipos e se vende ao comercial; nos pais e mães que renegam os próprios filhos.

Há, sim, uma praga a ser combatida, mas ela não está entre garotos como João Donati. Ela está entre os que parecem os mais certinhos e capazes de jugar e condenar os "não-certinhos". Essa praga se traveste de "amor ao próximo" para arrancar o dinheiro e a própria humanidade dos humanos, ensinando-os a se agrupar entre fanáticos que odeiam todos os que não são fanáticos como eles.

A praga a ser combatida é o transe que ainda vivemos, em pleno século 21, e que nos torna incapazes de enxergar a nós mesmos. 

Sócrates, 300 anos antes de Cristo, convidou a humanidade a um desafio que ela ainda não conseguiu realizar: conhecer a si mesma, aceitar sua natureza e, por consequência, respeitar a si e ao outro. Ele foi condenado a beber cicuta e morrer, por "corromper a juventude". 

Hoje, a sociedade dita "contemporânea" e cheia de direitos individuais, continua a condenar muitos dos que se encorajam a conhecer a si mesmos, se aceitar e se assumir diferentes das regras moralistas dos monstros aclamados como profetas.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Privatizem corações e genitálias!

"Livre iniciativa" é uma expressão que abunda nos discursos de políticos ligados ao conservadorismo religioso. Pastor Everaldo é um ícone sincero desse nicho fundamentalista: diz que vai entregar quase tudo que é estatal ao particular. Marina Silva, discípula dos (e subserviente aos) twittes de Silas Malafaia, prefere eufemismos, mas quer um Estado se metendo menos. O cômico, para não dizer trágico, é que ao mesmo tempo que defendem uma economia nas mãos de particulares, querem as genitálias e os corações das pessoas nas mãos do Estado.

Vejamos, pois.

O tal pastor já afirmou centenas de vezes que "família é homem e mulher", contrapondo-se à possibilidade de união civil entre pessoas do mesmo sexo, condição aceita hoje no Brasil por uma jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal), mas ainda não em lei (como já existe em muitos países avançados). Ou seja, o Estado "liberal" pregado pelo religioso-político não contempla o direito de cada um escolher com quem quer viver, transar, amar, sonhar e dividir sua vida. 

Marina tenta sair pela tangente nesse assunto. Fala que é a favor dos direitos igualitários, mas tropeçou feio ao mudar seu plano de governo, retirando o apoio à união civil em lei e se apegando a eufemismos. No fundo, ela também quer os corações e as genitálias estatizados, afinal, negar-se a evoluir neste tema é também uma posição clara no sentido de manter um sistema que impede as pessoas de serem o que são na plenitude de direitos legais.

Ou seja, Marina, Everaldo e seus pares querem um Estado ausente, por exemplo, em relação ao petróleo que brota do nosso chão, pois isso, para eles, deve ser encarado como problema privado e o governo não pode se meter. Mas ambos querem um Estado muito presente e interferindo no tipo de pessoa que está do outro lado da cama de alguém.

É bizarro, para dizer o mínimo, que quase 300 anos depois da Revolução Francesa, que deu luz ao direito individual e à criação do Estado de Direitos, ainda haja líderes pregando um Estado que define como cada um deve amar, se relacionar, dividir sua vida e ter prazer. E nisso se incluem também o atual governo, do PT, e os governos anteriores, do PSDB. Nenhum teve coragem de mexer nessa questão, justamente pelo temor da reação dos templos e das sacristias, em subserviência ao transe. 

Antes de discutir a Petrobras, a Eletrobras ou qualquer outro "bras", precisamos privatizar nossos direitos de amar e ser amados, de viver e conviver sob a égide de uma lei que respeite o ser humano e sua complexidade. É urgente que se privatizem os corações e as genitálias dos brasileiros, tirando do Estado um totalitarismo absurdo sobre a condição humana e permitindo que as pessoas vivam verdadeiramente livres no que tange ao seu foro íntimo e se empoderem do que é seu por natureza. Ou continuaremos rastejando nos ecos da Idade Média.

sábado, 30 de agosto de 2014

Marina Malafaia

ATO 1
MARINA SILVA, NOITE DE 29 DE AGOSTO DE 2014 (EM SEU PLANO DE GOVERNO, NO LANÇAMENTO DO MESMO):

"Apoiar propostas em defesa do casamento civil igualitário, com vistas à aprovação dos projetos de lei e emenda constitucional em tramitação, que garantem o direito ao casamento igualitário na Constituição e no Código Civil"

ATO 2
REAÇÃO DO PASTOR SILAS MALAFAIA EM SEU TWITTER:

Se a Marina não se posicionar até segunda, na terça será a mais dura e contundente fala que já dei até hoje sobre um candidato a presidente. Cristianismo não é religião, é estilo de vida, conduta em todos os aspectos da vida, na política, trabalho, educação, relações sociais etc. Até segunda, espero um posicionamento sobre o lixo moral do Pgm de gov do PSB para favorecer a causa gay.



ATO 3
MARINA SILVA, NA MANHÃ DO DIA 30 DE AGOSTO DE 2014, EM SEU SITE:

O texto do capítulo "LGBT", do eixo "Cidadania e Identidades", do Programa de Governo da Coligação Unidos pelo Brasil, que chegou a conhecimento público até o momento, infelizmente, não retrata com fidelidade os resultados do processo de discussão sobre o tema durante as etapas da formulação do plano de governo

O texto divulgado na sexta foi retalhado, se resumindo a:

"Garantir os direitos oriundos da união civil entre pessoas do mesmo sexo"






ATO 4
SILAS MALAFAIA, TARDE DO DIA 30 DE AGOSTO DE 2014, SOBRE A MUDANÇA NO PLANO DE MARINA, NO SEU TWITTER:

"Melhoraram muito. Ela fez porque sabe que não pode contrariar o povo evangélico. Decidimos qualquer eleição"


RESUMO DA ÓPERA

A candidata prometia, no seu plano de governo (que é um documento à nação e imagina-se que feito com cuidado e não com promessas que não representam o que a candidata pensa), avançar nos direitos LGBT no campo da política. Mas, menos de 24 horas depois, mudou de ideia  e alterou substancialmente sua posição sobre o assunto, lavando suas mãos diante dele.

Vejamos por quê: o direito ao casamento igualitário hoje é garantido por uma jurisprudência do STF. É um avanço, mas falta uma lei a ser aprovada pelo Congresso Nacional garantindo tal direito, como já aconteceu em muitas das mais evoluídas nações do mundo e também em países latino-americanos, como Uruguai e Argentina.

Ao mudar o texto do seu projeto de governo, Marina deixa de apoiar uma lei garantindo os direitos aos casais gays no Brasil e resume seu papel a "garantir" direitos já conquistados, ou seja, ela não quer fazer nada no campo da política a respeito dessa população.

E o Brasil, que foi o último país a abolir a escravidão, está condenado a ser o último a admitir em lei a união civil de pessoas do mesmo sexo.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

O preconceito e nossa covardia


 

Na quinta à tarde eu falava com Reinaldo Bulgarelli, uma referência em estudos sobre a diversidade humana no Brasil, que já trabalhou em projetos da Unicef e presta assessoria para empresas gigantescas focando a aceitação das diferenças no ambiente corporativo. Estou usando seu livro, "Diversos somos todos", nas aulas que dou de Comportamento Organizacional no Senac e consegui encontrá-lo pelas mídias sociais para marcar uma entrevista, que pretendo usar num material que publicarei sobre o tema. Ele terminou a conversa com uma frase animadora: viva a diversidade!

Em fatos concretos noticiados no mesmo dia da nossa conversa, entretanto, a tal diversidade que enaltecíamos era brutalmente ferida. Em um dos casos, em comentários sob uma afetuosa e bela foto que uma garota negra publicara com seu namorado branco no Facebook, escancarou-se o esgoto humano, tão fétido quanto o que estava para ocorrer logo mais, à noite, no jogo entre Grêmio e Santos, em Porto Alegre. 

No caso da foto no Facebook, a violência foi escrita, em expressões como "Onde o rapaz teria comprado a escrava?", "O casal parece que está na senzala" e "Se mexer vira Nescau"; no estádio em Porto Alegre, foi desferida em palavras faladas, como "macaco" e "negro fedido", para ofender o goleiro Aranha, que é negro. Em ambos os casos, escancara-se um horror que sobrevive em pleno século 21, em plena era da globalização dos povos, mesmo com todas as teias digitais capazes de nos conectar com (e nos ensinar sobre) todos os tipos de diferenças.

Os ecos da escravidão são tão vivos quanto estridentes em nossa sociedade. Três séculos depois da chegada de navios insalubres com negros acorrentados para serem vendidos como mercadoria e chicoteados para trabalhos forçados, torturas e horror; e cento e vinte e seis anos depois da assinatura da lei que os libertou, ainda somos um país de Casa Grande e Senzala, como bem trabalhou tal tema o escritor Gilberto Freyre. 

Em uma época que clama por sustentabilidade entre todos os seres que habitam a Terra, ainda existe, no mundo todo, quem acredita que alguns nascem para servir e outros para serem servidos; alguns nascem para comer, outros para serem devorados; alguns nascem para sofrer, outros para curtir os frutos de seu sofrimento. Tudo o que já aprendemos e ensinamos sobre a necessidade de aceitar o outro não bastou, pois aberrações acontecem todos os dias, protagonizadas por pessoas que, ao contrário da selvageria que demonstram ter, vivem muito bem, se alimentam muito bem e têm acesso ao que a sociedade produz de melhor.

Estamos órfãos de um enfrentamento real de todos os tipos de preconceito, que comece na educação e ecoe nas mais altas esferas do poder representativo. Estamos carentes da coragem de encarar esse tema sem nenhum tipo de concessão. Estamos covardes diante de um assunto que precisa estar presente e trabalhado claramente, sem subterfúgios ou eufemismos, sem "cuidados" preconceituosos, em todas as fases da vida educacional, da primeira infância ao último dia de vida: a diversidade e todas as suas ramificações.

É normal ser negro ou branco, ser hetero ou homo, ser travesti ou transgênero, ser religioso ou ateu, ser artista ou matemático, ser espontâneo ou inibido. O que não é normal é se achar mais normal que os outros. Volto a Bulgarelli para citar um aspecto de seu lindo trabalho: abraçar a diversidade não é incluir os diferentes em um grupo de "normais", porque todos somos diferentes uns dos outros. E é na diferença que está a nossa riqueza e nosso maior patrimônio: nossa essência.

Se queremos sobreviver à era da sustentabilidade, precisamos aprender e ensinar o valor da diversidade e enfrentar sem nenhuma reserva todas as manifestações de preconceito. Ou morreremos junto às matas que queimamos, ao mar que poluímos e ao ar que pintamos com a fumaça da nossa nuvem individualista, egocêntrica e arrogante.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Eleições: o buraco é mais embaixo

O debate de ontem e a campanha eleitoral como um todo mostram algo inegável, tanto à direita quanto à esquerda: o esgarçamento do modelo político brasileiro e a necessidade de novos caminhos que aproximem representantes e representados na nossa jovem democracia. 

Dos candidatos presentes ontem nos estúdios da Band, os dois cujos partidos já passaram pelo comando da República eram, de alguma forma, vidraça. Dilma, a maior delas, por ocupar o cargo mais importante de um governo que está há três mandatos no poder; Aécio, por representar dois mandatos do governo anterior e seu legado nada popular. Na tangente desse embate, surge Marina, que, mesmo sem uma proposta bem definida, ganha espaço como um "novo" que ninguém sabe entender direito, mas de qualquer jeito parece "novo".

O crescimento de Marina, que defende a fusão entre direita e esquerda e confunde oprimidos com elites; que quase ninguém conhece e cada vez mais gente ama, escancara a necessidade de reformar a política antes que ela se desintegre como alternativa à vida democrática, abrindo caminho aos ditadores sempre de plantão. A questão está além da estabilidade econômica arrogada pelo PSDB, a diminuição da desigualdade gerada pelo PT ou a sustentabilidade adaptada ao PSB. É a política como um todo que precisa ser discutida e isso necessita ser encampado por todos os partidos caso eles não queiram se misturar à geleia geral que levará todos ao mesmo abismo.

Não sejamos hipócritas! Vença quem vencer, precisará negociar com o PMDB de Sarney e com outras velhas raposas se quiser governar; precisará trocar cargos por apoios no Congresso se quiser ter projetos aprovados; precisará retribuir o que as empresas privadas e os bancos investiram nas suas campanhas; precisará ceder aos currais religiosos que ameaçam com pautas dogmáticas; e precisará jorrar dinheiro público na mídia para não ser fuzilado por ela. É essa engrenagem enferrujada, que foi utilizada tanto pelo PSDB quanto pelo PT, que precisa ser alterada e isso só será possível com o engajamento de toda a sociedade, hoje muito mais conectada com as teias digitais e, portanto, mais capaz de se engajar.

O que está em questão não é a permanência do partido X no poder, a volta do partido Y ou a chegada de um partido Z. A questão é se queremos ou não trilhar e desenvolver o caminho democrático, o único por meio do qual sociedades no mundo todo conquistaram o Estado de Direitos, a pluralidade de opiniões, o respeito às diferenças e as leis que permitem a convivência digna entre as pessoas.

Se queremos evoluir no sentido da liberdade, é hora de colocar em prática a tão falada (e nada praticada) reforma política. Só ela poderá parametrizar a fidelidade ideológico-partidária, acabando com a orgia de legendas de ocasião, banindo o financiamento privado de campanhas (tema que já está em curso, mas foi barrado no STF pelo mesmo Gilmar Mendes que soltou o médico-monstro-estuprador) e coibindo o fisiologismo parlamentar. É necessário acabar com a reeleição ininterrupta de vereadores, deputados e senadores que fazem da política uma sólida carreira profissional, muitas vezes sem nenhum compromisso com o interesse público. E é fundamental que se levantem as bases verdadeiras de um Estado laico, idealizado no século XVIII pelos iluministas na Revolução Francesa, mas que ainda não é totalmente claro na sociedade brasileira. Outro ponto é impedir que se mantenham monopólios midiáticos privados que fazem o papel de uma inquisição da opinião pública.

A questão, portanto, vai além de eleger Dilma, Marina ou Aécio. A questão é elegermos a democracia como um bem precioso do povo brasileiro, conquistada com luta e sangue e necessária para a vida com dignidade. Isso requer responsabilidade não apenas dos políticos-representantes, mas principalmente de todos nós, representados, que os escolhemos. O buraco é mais embaixo, e é problema nosso.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Marina, "petralhas" e "coxinhas"

Direita atropelada, esquerda contundida. É o efeito Marina, segundo uma pesquisa de boca-de-caixão feita pela Folha ainda quando os restos mortais de Eduardo Campos eram coletados.

A princípio, os tucanos estavam felizes com a novidade no tabuleiro eleitoral, considerando a chance de segundo turno que Marina traria ao capitalizar votos. Entretanto, ela trouxe mais: o segundo turno parece inevitável, mas sem garantia nenhuma da presença de Aécio Neves (aliás, muito pelo contrário...). Entre petistas, Marina sempre foi pedra no sapato, mas não se imaginava que com poder de derrubar Dilma.

A campanha está só começando e, de repente, a letargia se transformou em uma efervescência generalizada. Raivosos da direita já estão dizendo que Marina é uma “ungida que não negocia”, “autoritária”, dona de uma personalidade de “caráter olímpico”. À esquerda, ela é tachada de “Fadinha da Floresta”, “retrocesso”, “lado B tucano”. 

Há quem se mostre indignado com o fato de ela dizer que não estava no avião de Campos por “providência divina” (que beneficiou só a ela própria?). Dizem ainda que Marina mistura a Bíblia com a Constituição. Ora, mas Dilma (que empregou um ministro da pesca da Igreja Universal do Reino de Deus) e Alckmin estiveram na inauguração do Templo de Salomão e, lá, a presidente da República disse que “felizes são os que creem”. Na eleição passada, todo o PSDB de Serra se aliou a Silas Malafaia para enfiar questões religiosas nos debates, como se vivêssemos ainda na Idade Média. Será que só Marina mistura religião com política? 

Ademais, é bom lembrar que, se não fosse o STF liberar o casamento gay, nenhum partido teria abraçado a causa no Congresso, por medo de perder votos nos currais religiosos! Nem PT, nem PSDB, nem ninguém! Ou seja, estão todos com a Bíblia nos sovacos!

Há ainda os que criticam o fato de Marina ter pregado o novo e se aliaado aos de sempre. Sim, isso é verdade! Mas, quem está em condições de atirar primeira, segunda e terceira pedras nesse sentido? FHC se aliou a Antonio Carlos Magalhães e a todo o coronelismo que ecoa das Capitanias Hereditárias. Lula e Dilma se apegaram a Sarney. E todos continuam com o PMDB e seu fisiologismo que vem do paleolítico!

Não, não estou defendendo Marina. Nem achando que ninguém presta na política, pois esse pensamento só beneficia os aspirantes a ditadores. Em todo o mundo, a prática democrática é um jogo muito mais complexo que a dicotomia entre "santos" e "demônios", e ele depende muito da consciência e da participação de todos. 

Nesse sentido, a chegada de Marina Silva (essa complexa figura que já foi companheira de Chico Mendes defendendo seringueiros, ministra de Lula e hoje dialoga aos sorrisos com conservadores, tendo um banco como mecenas) está nos dando a chance de refletir sobre os passos fundamentais a serem dados para consolidarmos nossa jovem democracia. 

O buraco é muito mais embaixo que discussões cegas e intolerantes entre “petralhas” e “coxinhas” (gírias inventadas entre eles para se alfinetarem, se metralharem e se matarem). O nó está em um modelo arcaico sobre o qual se sustenta nossa democracia, financiada por grandes empresas privadas, especulada por uma mídia maquiavélica e onde a ideologia é constantemente sequestrada pela "governabilidade".

quinta-feira, 24 de julho de 2014

"Rá-Tim-Bum", nostalgia e hipocrisia



As filas que dobram quarteirão em volta do Museu da Imagem e do Som (MIS) aqui em São Paulo, onde está a exposição sobre o "Castelo Rá-Tim-Bum", são um caminho que me leva a duas reflexões. Primeira: não é verdade que o brasileiro é avesso à arte e à cultura, como apregoa o senso comum vira-lata. E segunda: trata-se de uma nostalgia que, por um lado, é bela, mas por outro beira à hipocrisia.

Explico. 

O "Castelo Rá-Tim-Bum" foi um programa infantil educativo de uma TV Cultura que caminhava para ser, guardadas todas as devidas proporções, um tipo de BBC tupiniquim: pública sem ser política-partidária, educativa sem ser chata e criativa, acima de tudo. 

Essa Cultura produziu programas brilhantes, como o próprio "Castelo" ou o "Rá-Tim-Bum", que o antecedeu, ou ainda o "Mundo da Lua", também para o universo infantil. Para jovens, havia, por exemplo, o "Matéria Prima", com um Serginho Groismann que fazia coisas muito melhores que apenas lamber globais. Para adultos, havia telejornais investigativos como o "60 Minutos", programas de debate de alto nível como o "Roda Viva", uma grade cultural diversificada e muito bem trabalhada no "Metropolis", entre outros tantos exemplos.

Acontece que essa TV Cultura está morta e o mesmo público que abarrota o MIS para quase chorar de emoção com os figurinos e cenários do "Castelo Rá-Tim-Bum" nada faz no sentido de reivindicar a volta de uma grade de qualidade na telinha mágica de uma emissora bancada com nossos impostos. Muito pelo contrário: apesar do excelente padrão que tinha, a Cultura nunca esteve nem perto de uma boa audiência (a Xuxa sempre foi muito mais querida no Ibope que a bruxa Morgana).

O que temos de programação infantil, hoje, na TV aberta é um esgoto fétido que mistura apelo ao consumismo e à erotização precoce, além da violência banalizada em desenhos animados que muitas vezes se parecem com filmes de terror. Ou seja, não ficou sequer um legado do "Castelo Rá-Tim-Bum" na TV brasileira e nisso todos temos culpa, afinal, antes de tudo, a Cultura é uma emissora pública e mesmo nas outras (comerciais) temos o direito e a possibilidade de influenciar na programação, desde que nos engajemos.

Sintonizar a TV Cultura, hoje, é quase entrar num museu televisivo: reprises, reprises e mais reprises. Quando não, é um palanque político que a emissora se transformou, a serviço do partido que governa o Estado há duas décadas, quase uma dinastia que parece não ter fim. O "Roda Viva" virou sucursal da revista "Veja" e todos os diretores geniais que criavam coisas como o "Castelo" -e tinham projetos brilhantes para sucedê-lo- nem têm mais cargo na emissora que só corta investimentos e não mantém nenhum projeto de futuro.

Nada contra os que estão na fila para ver os personagens do "Castelo" no MIS. Eu mesmo quero logo me somar a ela. Mas penso que poderíamos ir além e aproveitar essa nostalgia para refletir e agir sobre qual TV queremos ter em nossas salas, fazendo a cabeça de crianças, jovens e adultos. 

foto: Divulgação

quarta-feira, 9 de julho de 2014

E agora, Kajuru?

É fácil gritar palavras de ordem quando se tem um microfone aberto e um canal de TV disposto a gerar polêmica sem nenhum compromisso com a verdade. 

Jorge Kajuru, um comentarista que reflete muito bem o péssimo nível do jornalismo brasileiro (que prefere discursos inflamados e cheios de achismos aos fatos), afirmou meses antes da Copa que o Brasil ganharia o Mundial porque estava tudo comprado. Ele chegou a dizer que encerraria sua carreira caso isso não acontecesse. Veja no vídeo aí embaixo.


Pois o Brasil não venceu e provou-se que nada estava comprado. Pergunto: Kajuru vai cumprir a promessa de nos deixar livres de seus comentários dantescos? Mais que isso: vai ser responsabilizado pela grave acusação que fez? Ou será mais uma prova de que grande parte da corrupção e da impunidade deste país mora na imprensa, que sequestra e violenta a verdade em muitas de suas manchetes, permanecendo impune após publicar tanta barbaridade? 

Apenas lembrando um caso emblemático, que nada tem a ver com esporte ou Copa, mas tem tudo a ver com uma mídia irresponsável: o crime noticioso da Escola Base destruiu uma família e nenhum (nenhum!) jornalista foi responsabilizado por publicar denúncias falsas de abuso sexual numa escola infantil. Apenas multinhas que se arrastam nos tribunais foram impostas a gigantescos veículos de comunicação. O casal que era dono da escola já morreu, enquanto as multas apodrecem nas gavetas da Justiça. E a mídia continua gerando novas vítimas, dizendo que isso é "liberdade de expressão".

terça-feira, 8 de julho de 2014

Faltou verdade


O que mais nos faltou desde as vésperas desta Copa foi verdade. Aliás, esta é uma Copa que, há uns cinco anos, é vítima de um festival de mentiras. Começou fora de campo, com as previsões catastróficas sobre aeroportos, estádios, protestos, atos terroristas e afins, e hoje se escancarou dentro do gramado.

A verdade é que nunca tivemos uma grande seleção, capaz de conquistar o hexa e de fazer bonito em casa. E isso não quer dizer que temos o direito de ofender jogadores, avacalhar o técnico ou queimar bandeiras. Perdemos porque merecemos perder e porque no futebol alguém ganha e alguém perde -e, no geral, vence o melhor (hoje, indiscutivelmente a Alemanha).

Fomos vítimas de uma indústria que, por um lado, nos assustou dizendo até que o PCC agiria nas ruas matando pessoas e, por outro, nos enfiou goela abaixo um time de heróis invencíveis retocados em photoshop e ilustrados em outdoors, em caixas de cueca, em embalagem de sorvete, em gôndolas de supermercados. Nas narrações e nas mesas redondas, mais se torceu do que se analisou e os mesmos que começaram a cobertura do jogo derradeiro apostando na vitória do Brasil (como se tivesse o poder de prever) acabaram cravando críticas ferrenhas contra "o maior vexame da história", indo do ufanismo bobo ao "mimimi" infantil.

A primeira verdade que faltou é que a Copa que o jornalismo alardeou como um retumbante vexame é um sucesso -e quem reconhece isso é o mundo. A segunda é que a seleção que a publicidade e o jornalismo publicitário pintaram como um plantel de heróis é formada por um grupo de jogadores que ainda têm muito a aprender - e que não merecem nem ser exaltados, tampouco execrados, pois deram o que podiam dar.

Não tenho vergonha nenhuma de todos os gritos de gol que dei pela seleção do meu país, nem jamais usarei qualquer palavra ofensiva a qualquer jogador ou membro da comissão técnica. E tenho orgulho pela Copa que o Brasil está fazendo, certamente um acontecimento inesquecível que contribui para mostrar ao mundo nossa alegria, nossa diversidade, nossa hospitalidade e nossa competência em abrigar o maior evento do planeta.

Encaremos a verdade que não está no noticiário nem na propaganda, porque só a verdade nos liberta de dois dos piores defeitos humanos: a alienação e a hipocrisia. 

Foto: Agência Brasil

sexta-feira, 4 de julho de 2014

David Luiz, um brasileiro



Disseram que daríamos vexame em todos os sentidos, nos estádios, nos aeroportos, nas ruas, mas não demos. Muito pelo contrário, mostramos a todos que podemos, sim, sediar o maior evento do planeta em 12 (doze!) capitais do nosso país, do concreto de São Paulo à Floresta Amazônica. Mais que isso, mostramos que podemos encantar com nossa hospitalidade, com nossa alegria, com nossa criatividade e até com nosso jeitinho quando ele não é sinônimo de malandragem, mas de jogo de cintura.

Entretanto, entre xingamentos e vaias de uma elite intolerante, faltava surgir uma atitude que demonstrasse o que temos de melhor, encarnada em um pequeno gesto de um atleta chamado David Luiz. Distante dos holofotes das estrelas do futebol-publicidade, ele acabou eleito o melhor jogador da Copa até as quartas-de-final e, nesta sexta, 4 de julho, poderia ser eleito o melhor ser humano do evento, um brasileiro digno de representar o Brasil e quem sabe um mundo capaz de enxergar a vitória não como um placar ou uma taça de ouro, mas como resultado de atitudes dignas, acima das disputas.

Enquanto todos comemoravam a vitória do Brasil sobre a Colômbia, David Luiz se aproximou do inconsolável James Rodriguez, o craque adversário cuja vida pessoal e profissional é sinônimo de superação. Abraçou-o e, apontando para ele, pediu ao público que o aplaudisse, em reverência ao seu talento, à sua luta, ao reconhecimento que ele merece independente do resultado do jogo e do fato de fazer parte do time rival. Enquanto James chorava, David lhe mostrava que a vitória não está apenas em ser o melhor no placar, mas em lutar constantemente diante de todos os desafios que a vida nos impõe.

Neymar, o garoto com alma de gingante, fraturou uma vértebra, vem aí a perigosa Alemanha e tem a Argentina no páreo. Mas tudo isso é apenas questão de competição. Nós já vencemos a Copa. Vencemos o terrorismo da mídia, vencemos o complexo de vira-latas que Nelson Rodrigues descreveu tão bem e vencemos o desafio de provar que somos, sim, um país com os mais nobres valores.

David Luiz, um brasileiro que tem orgulho de seus cabelos cacheados, deu uma aula do que é o "fair play". Mais que isso: ele mostrou ao planeta como é o Brasil dos brasileiros que labutam de sol a sol, com dignidade e respeito a todos os adversários que surgem pela frente. 

A atitude deste atleta representa a mim e a você. E a todos os que acreditam que o melhor não é aquele que se sobrepõe ao outro, mas quem tem a grandeza de reconhecer que tudo está conectado. É a evidência de que não precisamos dos melhores do mundo; precisamos, sim, dos melhores para o mundo.

(Foto: Agência Brasil)

terça-feira, 1 de julho de 2014

Recorde a mídia terrorista pré-Copa



Se recordar é viver, como afirma o ditado popular, lembrar um pouco do que a velha mídia publicou sobre como seria a Copa do Mundo no Brasil, às vésperas do evento, é ter medo de morrer.

Caos aéreo, estádios sem condições de funcionar, metrô e trânsito abarrotados, apagão energético, protestos mortais num conluio entre black blocs e o PCC e até o próprio terrorismo foram alardeados como perigos reais pelos jornalões, revistas e TVs.

Pois o evento chega às quartas de final já tido como o melhor Mundial de futebol do planeta e da história. O Brasil mostrou que não só é capaz de fazer uma Copa como pode fazê-la encantadora, porque seu povo é encantador, bem diferente de suas mídia, podre e mentirosa.

Abaixo, estão algumas das capas de jornais e revistas dos grupos Folha, Abril, Estado e Globo. Esses veículos ditos jornalísticos deveriam se envergonhar do que fizeram, mas sequer tiveram caráter para pedir desculpas pelo festival de mentiras que estamparam em suas manchetes.



A Folha põe organização em xeque no dia da abertura


A Época, da Globo, traz para a Copa do Brasil ato terrorista praticado em Boston

O Estadão anuncia uma união entre black blocs e PCC para matar torcedores pelas ruas


Na CBN, da Globo, Jabor garante que a Copa escancararia a incompetência do Brasil
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Black blocs, greves, tumultos, terrorismo, crime organizado nas previsões da Veja
Veja usa "cálculos matemáticos" e prevê estádios prontos só para 2038


Folha prevê o caos aéreo

No Globo, atrasos

Na Época, da Globo, a ideia de que tudo no Brasil é puro atraso


LEIA +
Sobre o "vai tomar no c*" da abertura e as vaias ao hino chileno, clicando abaixo para ler: